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sábado, 9 de abril de 2022

Perséfone, a Rainha do Submundo

 Desenho que fiz de Perséfone, Deusa da terra e da agricultura. Está profundamente ligada às estações do ano. Mas, também é conhecida como a Deusa do Submundo (mundo dos mortos) e, por isso, representa a dualidade do material com o espiritual. Trás consigo o arquétipo da feminilidade mística e intuitiva.


Sua história parte de um desafio de Afrodite a seu filho Eros, com suas flechas de ouro que apaixonavam os corações, acertasse o sisudo Deus do submundo, Hades, que também era irmão de Zeus. Este, deixou seu reino para vir a superfície verificar a guerra entre deuses e gigantes que poderia deixar o submundo exposto aos raios solares. Eros aproveitou esta chance para acertar o coração de seu alvo, cumprindo assim seu desafio.

O que ninguém esperava é que ali perto, outro ser imortal deixava seu reino no Olimpo, para colher flores de narcisos em uma pradaria no mundo dos mortais. Foi quando Hades encontrou a filha de Zeus e irmã/amante Deméter (deusa da agricultura). Perséfone, que vivia alegremente ao lado de ninfas e de suas meias irmãs Àrtemis e Atena, agora era raptada para o reino dos mortos através de uma enorme fenda aberta pelo perdidamente apaixonado Hades  a fim de transformá-la em sua esposa.

Ao perceber o sumiço da filha, Deméter foi ficando cada vez mais triste. procurou-a por dias até que Hermes lhe contou tudo o que tinha ocorrido. A deusa ficou tão desolada que passou a se esquecer de suas obrigações e a agricultura deixou de ser fértil e a fome se propagou pela Terra. Zeus intercedeu para evitar o pior e enviou o mensageiro Hermes para negociar a soltura de sua neta. Mas Hades não queria abrir mão de sua bela sobrinha e disse que só a libertaria se esta não tivesse consumido nenhum alimento do submundo. Mas o Senhor do submundo ludibriou Persépolis a comer as sementes do fruto proibido, uma romã.

A solução imposta por Zeus foi que ela passaria um terço do ano no reino espiritual dos mortos cumprindo suas obrigações como esposa de Hades e o resto do ano, livre. Aqui, estabelecemos três estações: o inverno, quando tudo morre e esfria, Deméter se entristece e Persépolis, também; a primavera, quando a vida volta a florescer e a terra se enche de cores e alegria; e o outono quando a vida vai brochando e a deusa da fertilidade tem que voltar pela grande fenda aberta por seu marido que a leva de volta ao submundo. Mas, e quanto ao verão?

Bem, aqui a história dá uma reviravolta e voltamos para o danado do Eros e sua mãe Afrodite.

Acontece que naquele tempo, andava pelas florestas um jovem caçador chamado Adónis, filho de outra relação incestuosa entre o rei Cíniras, de Chipre, e sua filha Mirra. Dotado de enorme beleza, chegou a atrair a atenção até mesmo da deusa do amor, Afrodite o que causou um certo ciúmes da parte de Eros. Sua mãe consolou-o levando até o seio onde sem querer se cortou com a ponta da lança de ouro que lhe despertou um amor avassalador para com o rapaz que caçava pelos bosques. Perdidamente apaixonada, passou a ter um caso ardente com Adónis que não passou despercebido da atenção de seu marido Ares, o deus da guerra, que passou a armar um plano para se vingar daquele ultrajante mortal.

Persépolis, após ter com sua mãe em tempos de liberdade, resolveu passear na Terra e um dia topou com o furor de Afrodite e Adónis em um lindo lago. Escondida, observou os dois de longe, porém, sem perceber que também era observada pelo pequeno Eros. Este resolveu aprontar mais uma da suas diabruras e logo desferiu outra flecha no peito da rainha do submundo. Em segredo ela jurou que um dia Adónis seria dela.

Afrodite, de alguma forma pressentiu que algo poderia se suceder ao seu amado e o fez jurar que não saísse do bosque para caçar novamente. No entanto, Ares colocou em seu caminho um enorme Javali com sangue no olhar, o que ascendeu o espírito de caçador de Adónis. Acabou morto por uma mordida do porco em sua anca. Foi recebido com pompa no mundo dos mortos por Persépolis que  encaminhou direto para sua cama enquanto Hades dormia em outro aposento.

Mistérios de Eleusis
Quando a deusa do amor soube do ocorrido, foi até o reino dos mortos reivindicar a Adónis. Mas Hades e Afrodite riram de sua petulância e a enxotaram dali. Ela apelou pra seu pai, Zeus, interceder, mas ele já estava cheio de ter que lidar com o reino de seu irmão mais rabugento. Triste, indignada e humilhada, a deusa do amor azedou a todas as relações, inclusive a do pai com Hera, que já era extremamente conturbada. Então Zeus fez um novo acordo com o submundo mas, dessa vez, diretamente com Persépolis: Adónis sairia do mundo dos mortos, porém como imortal e pertenceria um terço do ano à ela (que ficaria mais a vontade com o amante, longe dos olhos do marido). Por fim, o período desta ardente paixão corresponde a estação do verão.

 

 Apesar de ser uma Deusa da agricultura e da vegetação, o nome de Persépolis e de Hades era temido de ser dito por muitos gregos. Talvez por conta da desgraça ou por conta do mau agouro em se tratando de morte. Mas, provavelmente, esta deusa fora sincretizada de religiões antigas mais próximas do que poderia ser classificado com paganismo, embora este seja um termo pouco aplicável a Grécia antiga politeísta. O fato é que já existia um culto à ela desde as mais antigas comunidades agrícolas estabelecidas pela Grécia. Talvez daí venha o nome Koré entre os próprios gregos e Prosérpina, entre os romanos. Tal culto estava fortemente ligado à primavera e busca da fertilidade na agricultura. Um dos rituais mais conhecidos era o Mistério de Eleusis, um culto secreto realizado apenas por iniciados.

Além das estações, Persépolis também está ligada intimamente a imaginário feminino podendo suas fases serem comparadas ao ciclo menstrual ou mesmo, à relação do matriarcado ante ao machismo e à introspecção, sendo o momento do inverno entendido como uma a fase de recolhimento com o interior de si mesma.



Neste desenho, escolhi, como referência, a sacerdotisa (pítia) representada no oráculo do filme 300, de Zack Snider. Por seus dons proféticos, as pítias gozavam de raro prestígio num mundo dominado pelos homens na Grécia antiga. Provavelmente, usavam de vapores entorpecentes para entrarem em transe. Adicionei à imagem alguns sutis elementos para compor Persépolis e sua relação com o intuitivo e com a natureza. 





Rosa Egipcíaca e menino Jesus

"Quando não souberes para onde ir, olhas pra trás e saibas de onde veio"

                                                                  provérbio africano



Certas histórias são convenientemente esquecidas. Mas, graças à ousadia de algumas pessoas como o antropólogo, historiador e ativista Luis Mott, ocasionalmente, podemos ser agraciados com o resgate de histórias tidas como vergonhosas para a memoria da sociedade brasileira.

É o caso da história contada no seu livro, Rosa Egipcíaca. Uma Santa Africana no Brasil,  que traz a luz a epopeia da mulher negra do século XVIII de maior volume documental disponível. Como pode ter sido, então, tão ostracizada? Bem, justamente pela sua caminhada.


Nascida em Uidá, localizada na atual República de Benin, em 1719 era mais uma escravizada da nação couranas sob as garras do escravocrata Reino de Daomé (primeiro país a reconhecer a independência do Brasil, em 1822). Vendida aos portugueses, Vera "Courana"caminhou até o entreposto do Castelo da Mina de onde partiu para o Rio de Janeiro com 6 anos de idade. O sujeito que a comprou, estuprou-a aos doze anos de idade e depois a vendeu, aos 14, para a família do Frei de Santa Rita e Mourão em Santa Rita - MG, pra onde vai a pé (e descalça!). Lá ela começa a trabalhar como prostituta no auge da exploração mineira por mais 15 anos. 

Aos 30 anos, aproximadamente, ela tem sua primeira primeira visão na Igreja de São Bento, chegando a desfalecer. Depois, ela contrai uma enfermidade que lhe causa dores terríveis com inchaços que a prostravam ao chão. Por isso, acaba sendo descartada como prostituta. Passa a ter seguidas experiências místicas. Um dia, entrou em uma igreja onde afrontou um padre Capuchinho, o que acarreta em um açoitamento em praça pública por horas, resultando no aleijamento de seu braço direito. Então, é encaminhada ao padre Francisco Gonçalves Lopes, o Xota Diabos (alcunha de exorcista), que vê nas possessões dela, visões divinas. 

Agora, a Courana passa a levar uma vida mais franciscana, vende seus próprios bens como roupas e jóias, amealhadas com a venda de seu corpo, e doa tudo aos pobres. Sua fama de curandeira se espalha por Minas Gerais e chega até o Rio de Janeiro. Muitas pessoas vinham visitá-la e assistir suas possessões e predições. Logo, acaba  por ser sujeitada a um conselho inquisitório de teólogos convocado pelo frei de Mariana, Manoel da Cruz, para avaliar se ela era possuída pelo demônio ou se tinha algum grau de santidade. Resiste à torturas, como ficar por cinco minutos com uma vela acesa na boca tendo que manter que suas visões eram reais. Acaba por ser considerada uma feiticeira e, prestes ao seu julgamento final, foge com o Xota-diabos para o Rio de Janeiro em 1751. 

Passa a se chamar de Rosa Maria Egipcíaca de Vera Cruz (provavelmente uma homenagem à, também ex-prostituta Santa Maria Egipcíaca, que também tinha visões divinas). É na igreja de Nossa Senhora da Lapa que Rosa tem sua mais extraordinária visão a do menino Jesus vindo para ela, que desmaia e se levanta  falando línguas diferentes. Consequentemente sua fama vai crescendo entre os cariocas. Passa a ganhar doações e cria o Recolhimento, um espaço que recolhe prostitutas (a maioria, negras) abandonadas. Ali, começa a produzir biscoito feitos com sua saliva, nunca um cuspe foi tão rentável! Rosa prediz que a cidade sofreria um grande terremoto, tal qual Lisboa, em 1755. Nesse contexto, é importante entender o quão religiosa era a vida naquela cidade latino-americana.

Dez anos depois, já com grande fama e, até, um livro escrito chamado Sagrada Teologia do Amor Divino das Almas Peregrinas, (o mais antigo livro escrito por uma negra na história do Brasil, onde descreve a experiência sensorial de contato com Jesus de quem recebera o título e o encargo de Mãe da Justiça), passa a ter visões cada vez mais delirantes (como ter frequentado a mesma manjedoura de Jesus e ter dado de mamar pra este) Ela própria seria a esposa da Santíssima Trindade, a nova redentora do mundo. Realiza sessões de culto religioso em que se mesclavam elementos do misticismo cristão com práticas afro-brasileiras que beiravam à idolatria, com danças em torno do altar e o uso de pitar cachimbo.

Um dia, afronta uma madame aristocrata e este caso a leva (junto com seu padre-empresário, Xota-diabos) à uma nova inquisição, dessa vez, em Lisboa. Francisco logo declara ter sido enganado pela falsidade da negra e pede por misericórdia, recebendo uma pena branda. Mas Rosa Egipcíaca mantém suas convicções até o fim, que não se sabe qual foi até hoje. pode ter sido queimada, mas o mais provável é que tenha perecido em algum gélido calabouço da Santa Inquisição.