"...e às vezes, quando estou muito tempo em alguma cidade, ouço um ruído de vento e o som de motores. É a Estrada me dizendo: VENHA, YURY, VENHA"
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vista de dentro da minha barraca em algum posto
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É 5h30 da manhã. Conforme combinado de noite com o frentista, eu me levanto com o som de caminhões aquecendo os freios. Arrumo minhas coisas e, se não estiver chovendo muito, sigo caminhando pela estrada enquanto estico o polegar para os carros que passam. Minha mochila é rasgada e pesada, e quando paro, aproveito para beber a água que trouxe do posto de gasolina e costurar um pouco. O Sol, as vezes provoca um pouco de delírio, principalmente se o estômago estiver vazio. Me ponho a cantar ou a atirar pedrinhas em algum alvo (adoro as latinhas e o som que estala quando acerto-as). No meu mundo imaginário sou um competidor do nível sudamericano representando o Brasil sobre a narração do Galvão Bueno e os comentários de Arnaldo César Coelho. Nem sempre eu ganho.
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colibri gigante atropelado |
Olhando para trás com minha audição sempre alerta ao ronco dos motores do por vir, percebo a paisagem a minha volta, o som da fauna e da flora que chega a ser berrante em seu silêncio. De repente topo com a carcaça de algum bicho. Atropelado, provavelmente. Se eu olhar com mais atenção, encontro sementes e, com mais atenção ainda, alguma pedra semipreciosa. Acho importante relatar isso para que as pessoas entendam que eu
NÃO COMPRO ANIMAIS MORTOS E, SIM, ENCONTRO-OS NA ESTRADA, NO MATO, NO DESERTO, PRAIA OU ESCAMBO COM OUTROS TRECHEIROS.
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Conchas de Jambeli - Equador |
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crisocola encontrado em Nasca - Perú |
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medicina quechua |
São 3 os melhores momentos momentos do rolê.
O primeiro melhor momento é conseguir a carona. A gente nunca sabe quem vai parar e isso é fascinante. Uma pessoa que dá carona por si só, já tem o meu respeito. A conversa, o encanto mútuo, a história de vida e as referências históricas, políticas e, principalmente, de lugares para se conhecer. São coisas que me alimentam a alma e me enchem de excitação.
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vista de uma carona na caçamba do Caminhão |
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caminhoneiro e outras mochileiras. |
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O segundo momento é conhecer um lugar novo. Tenho comigo a ideia de que o mundo é muito grande para se voltar para um mesmo lugar e, só abro a exceção para reencontrar minha família. Porque é enriquecedor conhecer lugares, senti-los. O cheiro, a vegetação, a cultura, as paisagens e as lembranças que podem trazer. Viajar sozinho é triste por não poder compartilhar estes momentos, mas ao mesmo tempo te dá muito mais mobilidade para vivê-los mais vezes. Emfim, após isso é preciso se desenrolar para conseguir trabalhar (sempre cuidando com fiscais, artesãos locais invejosos, ladrões e xenofóbicos). Quando não rola no artesanato, rola tocando flauta ou com malabarismo, ou das três formas e, raramente, de forma nenhuma... De noite, procurar um lugar seguro pra descansar. Às vezes rola de ser adotado. E outras vezes, na hora de partir, rola de alguém querer ser adotado ou simplesmente querer viajar junto. Meu ritmo é frenético e, dificilmente alguém consegue me acompanhar por mais de 3 cidades. Fatalmente a cidade engole as pessoas. Eu prefiro a estarda e é pra lá que volto.
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Oásis de Huaccachina |
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Sol se pondo no Pacífico |
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Linhas de Nasca - Peru |
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Vale da Morte - Chile |
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mocó onde dormi no deserto de Atacama |
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pré-carnaval de Oruro - Bolívia |
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Mar de turistas em Águas Calientes |
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referências ancestrais |
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Casa abandonada em Florianópolis - Brazil |
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técnica peruana de arame que aprendi no Chile |
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expondo em Montanita, conhecida por ser meca sulamericana dos mochileiros - Ecuador |
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tocando flauta em Puno |
O terceiro momento é quando armo a minha querida barraca torta, arrumo dentro dela, deito e com um belo sorriso no rosto, descanso o sono dos justos. Torço pra que minha família esteja bem e que poça sonhar com meu falecido pai mais uma vez pois são meus sonhos preferidos.
E, nessa rotina sem o compromisso de ser uma rotina, vou conhecendo uma infinidade de pessoas, cidades de diferentes países, parques nacionais, praias atlânticas, pacíficas, lagos sagrados, ruínas milenares, culturas diversas, glaciares, vulcões, sotaques e línguas (aprendi espanhol no Uruguai e aprimorei na Patagônia enquanto o inglês ficou por conta dos milhares de gringos que vou encontrando).
Nunca tive conta em banco (ainda), não trabalho com nenhuma revenda, não possuo nenhum documento além da minha surrada carteira de identidade e, porventura, um visto de entrada. Às vezes estou liso de dinheiro.
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Lauca- entre Chile e Bolívia |
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mosaico em Cochabamba |
Para tanto pago o preço disso. É preciso lidar com a sorte o tempo todo. Um agente da fronteira ou do IBAMA que não entende que um artesão mochileiro não compra, mas acha sua matéria. Um policial, que não entende que um cara com a cara barbuda e suja não está, necessariamente carregando drogas. Pessoas que confundem o pó da estrada com falta de higiêne (é impossível viajar a pé e não se sujar com suor e poeira). Enfim, preconceito em geral.
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aprendendo as carrancas |
Já passei por muitas situações de risco, sim. Matadores, chacinas, acidentes de estrada, cataclismas, excessos de drogas e depredação da natureza. O lado feio desse mundo está muito impresso em cada automóvel que poderia dar uma carona mas passa reto. Mas o lado lindo está no próprio caminhar e tudo aquilo que isso te proporciona...