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sábado, 9 de abril de 2022

Rosa Egipcíaca e menino Jesus

"Quando não souberes para onde ir, olhas pra trás e saibas de onde veio"

                                                                  provérbio africano



Certas histórias são convenientemente esquecidas. Mas, graças à ousadia de algumas pessoas como o antropólogo, historiador e ativista Luis Mott, ocasionalmente, podemos ser agraciados com o resgate de histórias tidas como vergonhosas para a memoria da sociedade brasileira.

É o caso da história contada no seu livro, Rosa Egipcíaca. Uma Santa Africana no Brasil,  que traz a luz a epopeia da mulher negra do século XVIII de maior volume documental disponível. Como pode ter sido, então, tão ostracizada? Bem, justamente pela sua caminhada.


Nascida em Uidá, localizada na atual República de Benin, em 1719 era mais uma escravizada da nação couranas sob as garras do escravocrata Reino de Daomé (primeiro país a reconhecer a independência do Brasil, em 1822). Vendida aos portugueses, Vera "Courana"caminhou até o entreposto do Castelo da Mina de onde partiu para o Rio de Janeiro com 6 anos de idade. O sujeito que a comprou, estuprou-a aos doze anos de idade e depois a vendeu, aos 14, para a família do Frei de Santa Rita e Mourão em Santa Rita - MG, pra onde vai a pé (e descalça!). Lá ela começa a trabalhar como prostituta no auge da exploração mineira por mais 15 anos. 

Aos 30 anos, aproximadamente, ela tem sua primeira primeira visão na Igreja de São Bento, chegando a desfalecer. Depois, ela contrai uma enfermidade que lhe causa dores terríveis com inchaços que a prostravam ao chão. Por isso, acaba sendo descartada como prostituta. Passa a ter seguidas experiências místicas. Um dia, entrou em uma igreja onde afrontou um padre Capuchinho, o que acarreta em um açoitamento em praça pública por horas, resultando no aleijamento de seu braço direito. Então, é encaminhada ao padre Francisco Gonçalves Lopes, o Xota Diabos (alcunha de exorcista), que vê nas possessões dela, visões divinas. 

Agora, a Courana passa a levar uma vida mais franciscana, vende seus próprios bens como roupas e jóias, amealhadas com a venda de seu corpo, e doa tudo aos pobres. Sua fama de curandeira se espalha por Minas Gerais e chega até o Rio de Janeiro. Muitas pessoas vinham visitá-la e assistir suas possessões e predições. Logo, acaba  por ser sujeitada a um conselho inquisitório de teólogos convocado pelo frei de Mariana, Manoel da Cruz, para avaliar se ela era possuída pelo demônio ou se tinha algum grau de santidade. Resiste à torturas, como ficar por cinco minutos com uma vela acesa na boca tendo que manter que suas visões eram reais. Acaba por ser considerada uma feiticeira e, prestes ao seu julgamento final, foge com o Xota-diabos para o Rio de Janeiro em 1751. 

Passa a se chamar de Rosa Maria Egipcíaca de Vera Cruz (provavelmente uma homenagem à, também ex-prostituta Santa Maria Egipcíaca, que também tinha visões divinas). É na igreja de Nossa Senhora da Lapa que Rosa tem sua mais extraordinária visão a do menino Jesus vindo para ela, que desmaia e se levanta  falando línguas diferentes. Consequentemente sua fama vai crescendo entre os cariocas. Passa a ganhar doações e cria o Recolhimento, um espaço que recolhe prostitutas (a maioria, negras) abandonadas. Ali, começa a produzir biscoito feitos com sua saliva, nunca um cuspe foi tão rentável! Rosa prediz que a cidade sofreria um grande terremoto, tal qual Lisboa, em 1755. Nesse contexto, é importante entender o quão religiosa era a vida naquela cidade latino-americana.

Dez anos depois, já com grande fama e, até, um livro escrito chamado Sagrada Teologia do Amor Divino das Almas Peregrinas, (o mais antigo livro escrito por uma negra na história do Brasil, onde descreve a experiência sensorial de contato com Jesus de quem recebera o título e o encargo de Mãe da Justiça), passa a ter visões cada vez mais delirantes (como ter frequentado a mesma manjedoura de Jesus e ter dado de mamar pra este) Ela própria seria a esposa da Santíssima Trindade, a nova redentora do mundo. Realiza sessões de culto religioso em que se mesclavam elementos do misticismo cristão com práticas afro-brasileiras que beiravam à idolatria, com danças em torno do altar e o uso de pitar cachimbo.

Um dia, afronta uma madame aristocrata e este caso a leva (junto com seu padre-empresário, Xota-diabos) à uma nova inquisição, dessa vez, em Lisboa. Francisco logo declara ter sido enganado pela falsidade da negra e pede por misericórdia, recebendo uma pena branda. Mas Rosa Egipcíaca mantém suas convicções até o fim, que não se sabe qual foi até hoje. pode ter sido queimada, mas o mais provável é que tenha perecido em algum gélido calabouço da Santa Inquisição.







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